4/09/22
Serial Experiments Lain (1998)
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Conectar-se a uma obra de natureza tão realista e sensitiva, sendo até inacessível de o assistir pelas informações transmitidas não através de eventos claros, mas através de inúmeros pequenos detalhes continuamente revelados ao longo de cada episódio, são cansativos a quem o quer emergir com clareza. Demorei alguns meses para decidir dissecar SEL e o entender como uma obra filosófica de complexidade absurda. SEL é um anime de ficção científica pós-moderno, alinhado a obras importantes para a formação dos gêneros pós-cyberpunk que exploram temas como a consciência da própria existência. Por exemplo o clássico Ghost In The Shell, onde Motoko Kusanagi enxerga impossibilidade de entender sobre sua individualidade na sua perspectiva de um cyborg. Mas, voltando ao que realmente interessa, se você nunca assistiu Serial Experiments Lain, você provavelmente deveria. Vou estar espoliando bastante daqui em diante e mesmo que a experiência de o assistir seja mais como observar os acontecimentos sob a atmosfera/ambiente do anime e não sobre o plot ou aflição de se querer saber o que vai acontecer no próximo episódio (até porque a sequência de acontecimentos são tão incertas quanto o que você deixa ou não de entender). A intenção que tenho escrevendo essa review é falar sobre a minha experiência e perspectiva com uma obra que como nenhuma outra conseguiu chegar tão perto do que eu considero “identidade”, que chega até mesmo ser uma relação interpessoal no final das contas.
Sendo lançado nos meados dos anos 1998, muitos de seus pontos ainda são relevantes e é isso que o torna um clássico, pelo menos para a época que foi feito. SEL tem ganhado em peso uma quantidade significativa de pessoas na comunidade desde a popularização pela sua estética e até pelos temas enigmáticos e misteriosos expostos no anime. Embora diferentes temas ou estéticas venham e vão, um clássico pode ser apreciado por sua construção e importância dentro do gênero. As artes impecáveis do Yoshitoshi Abe trouxeram uma identidade visual impecável que combina tão bem com a essência da obra, incluindo o jogo de Playstation lançado no final da publicação do último episódio, ele consiste em um network simulator que se permite explorar pedaços aleatórios de informação que submete o jogador a juntar as peças da história de Lain.
Em Serial Experiments Lain, há uma variedade de diferentes dimensões em sua gama de ideias, todas de enorme profundidade. Cada detalhe dentro do anime pode ser facilmente focado em uma única investigação a fim de apresentar uma nova maneira de se observar a obra. As consequências e impacto das tecnologias na sociedade, a desconstrução da internet e a psicologia da introspecção são vividos durante os episódios que cabe a nós entendermos suas funções na linha de raciocínio da história (que é tão desordenada que chega a ser fatigante). A comunicação é um tema importante em todos os episódios, e a maioria das personagens são extremamente solitárias e alienadas do resto do mundo. Os pontos em aberto dentro de SEL são ilimitados, existem também os detalhes dos detalhes que seriam impossíveis de serem resumidos em um review curto, especialmente considerando os aspectos mais subjetivos do anime. Antes de irmos para os tópicos principais, há certos sentidos que são relevantes serem explicados. Existe o senso comum de muita das vezes acreditarmos automaticamente no irreal e em ações não coesivas com a nossa vida que assistimos em filmes, obras ou qualquer pedaço de mídia que seja, não que isso seja ruim, mas existe inegavelmente essa vontade voluntária de aceitar qualquer premissa as vezes até ausente de ciência ou lógica por trás que caiba de apoio para o sentido, que no final vai ser a essência da ficção.
Mas o que que isso tem haver? Quando a distância emocional do show e do mundo real se deixa levar pelo simbólico, o apego a um anime que te acompanhou pela infância, por exemplo, no dia dia você se dá de conta que as coisas não funcionam da mesma forma e que não tem nada de comum com a realidade. Neste aspecto, a oposição de Serial Experiments Lain funciona muito bem, a condução da história encaixa sublimemente ao realismo brutal de que a vida é chata, e vivemos assim. É maçante assistir, os episódios são parados, não fazem sentido, e não tem música. Não existe qualquer valor convencional de te fazer descontrair com alguma piada ou de ser minimamente divertido como clássicos Shonens que tem seus momentos voltados exclusivamente para explicações de seu mundo teórico, 10 minutos de luta narrada pelo personagem descrevendo seus golpes na luta por exemplo, e isso fundamenta a razão e realismo absoluto para se entender minimamente o que tá rolando até a metade do anime. A esse ponto, podemos seguir em frente a próxima camada, a caminho compreender o The Wired e a sua função metafísica lá pra frente.
Enquanto na primeira metade o enredo parece ser o resultado da própria experiência subjetiva de Lain e os que se envolvem na sua trama, mais tarde passamos a entender a existência de um reflexo de uma realidade superior à de Lain, que outros não têm acesso. Em particular, a aparição do The Wired parece ser o equivalente à internet que usamos, tanto tecnologicamente quanto socialmente. No entanto, a natureza de The Wired revela-se ter dimensões drasticamente diferentes, principalmente no que difere entre ele e o 'mundo real'. Para representar o The Wired, devemos entender que ele é outro nível de realidade que existe paralelamente ao ao mundo real no anime, enraizado por trás do cotidiano real de Lain. Em detalhes dos primeiros episódios, uma colega da turma de Lain comete suicidio, na escola, colegas de turma relatam terem recebido emails da garota supostamente morta, alegando que sua consciência ainda existia e estava conectada ao Wired. Quando Lain sai de casa pela manhã, seu caminho é cruzado pelas sombras das linhas de energia e há um zumbido sempre presente. Essa cena se torna simbólica de como Lain inconscientemente atravessa as fronteiras entre os mundos real e virtual. Desse modo, é apresentado o deslocamento do The Wired, ele deixa de ser uma rede de computadores dentro do anime e se torna duplicado e suas duas facetas se dizem respeito ao computacional e ao metafísico.
A tecnologia é um certo aspecto do desenvolvimento humano. É interessante examinar a aparente conexão entre o humano e um dispositivo tecnológico, o humano por natureza tem vontade, senso de liberdade, capacidade de escolha e necessidade de se distinguir e se identificar. Através da internet ganhamos o poder de confirmarmos nosso status de poder e capacidade. Deixamos nossa marca escrevendo uma opinião sobre uma obra e desenvolvendo um senso de superioridade divina. A tecnologia científica dentro do The Wired, é um tipo de conjunto global tecnológico que, por alguns meios, afetam fundamentalmente a psique a ponto da digitalização da própria consciência dos usuários. A manipulação de cérebros humanos é real, a tecnologia que afeta a psique é enraizada na consciência de quem o usa, como se o cérebro fosse meramente uma junção de fios e correntes elétricas facilmente manipulados que podem se conectar a máquinas, todos os níveis de fenômenos mentais que compõem os seres conscientes também são simplesmente construções autônomas de informações sem depender de qualquer cérebro ou corpo a mente humana consegue ser replicada dentro do The Wired como vimos a colega de classe enviando emails.
O inconsciente coletivo, ou The Wired, pode ser interpretado como uma dimensão metafísica dos sonhos (é simplesmente uma tecnologia que afeta a psique), que ameaça se tornar um pesadelo para aqueles que se envolvem nele. Tudo o que é vivenciado por alguém que está conectado ao The Wired são projeções, ou 'hologramas', de informações armazenadas, podemos representar isso com o ‘miniworld’ em databases reais do nosso mundo, uma database nada mais é do que um modelo lógico para armazenar um ‘minimundo’. Este 'mini mundo' pode ser completo ou parte de uma instituição no mundo real, em SEL a projeção criada no ‘miniworld’ é a consciência da mente humana e se torna uma realidade observável onipresente. À medida que a própria Lain está se transformando e escavando a realidade projetada do The Wired, as mudanças são espelhadas por seu ambiente, que se torna fria, isolada e minimamente acolhedora, retratando sua solidão completa ao se integrar com o The Wired. O ambiente escuro de Lain fica sobrecarregado com fios e aparatos tecnológicos refletindo como o The Wired se torna uma fonte de conforto para Lain quando sua estrutura familiar é rompida. A ligação fundamental do The Wired vai além do que é externo ao humano, mas na verdade se estende à mente de cada observador. Entendemos aqui que, as mentes dos seres humanos, pode ser manipulado, criado ou apagado de qualquer forma no The Wired. A esse ponto, para Lain a comunicação através do The Wired torna-se uma forma importante para ela lidar com sua solidão, permitindo que se conecte com outras pessoas. Lain entra no The Wired com uma tentativa de se comunicar com Chisa Yomoda, a colega que cometeu suicidio. O pai de Lain diz a ela que ‘as pessoas se conectam umas às outras, e é assim que as sociedades funcionam’, apesar das garantias do pai de Lain de que não há nada a temer online, porque o The Wired é simplesmente um meio de comunicação, a humanidade se torna dependente do The Wired para qualquer forma de qualquer ligação. Isso leva Lain a questionar seu senso de realismo e identidade quando ela começa a acreditar que ela só existe nas memórias dos outros. Se você não for lembrado, você não existiu. Isso liga ao o que a Lain é.
Lain Iwakura no começo dos eventos é singularmente despretensiosa, ao decorrer de sua ligação ao The Wired, notamos o como desprendida ao real e detalhadamente individual ela é. Ela não se encaixa no seu grupo de colegas e é desajustada à realidade, ela é completamente perdida na sua própria consciência. O sentido de como The Wired tem facetas infindavelmente mais vastas do que achamos inicialmente, Lain da mesma maneira é facetada. Há muito mais em Lain Iwakura do que aparenta. O seu próprio nome não se refere a uma pessoa, mas sim a de vários seres. Simultaneamente, as ações de Lain parecem ser apenas indícios de um transtorno. A dimensão aos problemas de persona dela se tornam reais, no episódio 6, duplicações de Lain aparecem no espaço cibernético para causar caos no mundo real, Lain se pergunta através de paisagens de dados projetadas no The Wired, aqui, ela está dominada pela sua personalidade ‘agressiva’. No próximo episódio, Lain fala com seu computador, explicando que há uma Lain no The Wired diferente da ‘shy’ Lain, que é quem ela vê como ela mesma. A ‘shy Lain’ é mostrada deitada em sua própria cama em um ataque de pânico, o que pode ser descrito como uma representação artisticamente de um colapso mental, que envolve um conflito entre a Lain ‘agressiva’ e o Lain 'pervertida' sobre quem cada um deles é, para sua agonia, a ‘shy’ Lain é forçada a resistir às outras fragmentações. O resumo prévio das personas não será trago novamente, minha intenção é fixar outro tema que requer o conhecimento consolidado da fragmentação de Lain.
“Todas as funções do corpo humano, sem exceção, podem ser colocadas em palavras e descritas em termos materialistas. O corpo nada mais é do que uma máquina. Se as limitações físicas do corpo restringe a evolução da humanidade, seria como se a queda da espécie chamada “homem” já tivesse sido decidida por um Deus que nem existe.”
O interessante dessa fala de Eiri é que, uma visão de mundo na qual a realidade física é descartada, mas uma verdade superior nunca é reconhecida, enquanto o The Wired torna Lain semelhante a um deus, é somente através do corpo que Lain é capaz de experimentar o próprio. Lain coloca algumas questões interessantes sobre a forma como a evolução humana é abordada. ‘Deus’ apropria-se de uma visão antropocêntrica. Lain faz a ‘Deus’ a pergunta “Quem lhe deu esses direitos?” O diálogo entre Lain e ‘Deus’ pode funcionar como uma metáfora para o discurso sobre a ética relacionada e a tecnologia. Nesse ponto de partida, decolamos ao que realmente nos interessa, os contextos psicológicos e a verdadeira natureza da realidade na qual o eu psicológico deve funcionar. A realidade final da consolidação do The Wired e de Lain, como já visto que a criação projetada e da realidade dentro da tecnologia do Wired é uma dominação global da consciência humana. Essa rede sinistra e enigmática, tem grande parte do pensamento seguido pela epistemologia e reflexões do que é realmente a realidade para um ser humano. SEL instropecta o significado da realidade de existir e que para algo no passado existir teria que existir na memória de alguém. Modificar as memórias coletivas e distorcer a realidade, ou até mesmo as destruir é possível no The Wired, a base em que qualquer acontecimento, objeto ou evento seja real, é a memória.
A experiência que compõem Serial Experiments Lain é incomparável e única. É assim porque Serial Experiments Lain é uma jornada para a mente do próprio espectador, além da observação da jornada da personagem. Lain é não somente um corpo fragmentado pela sua impossibilidade de consolidação no mundo real, mas uma espiral mirabolante inimaginável absurdamente inspiradora e marcante para aqueles que o convêm. A liberdade da possibilidade de explorar o inconsciente coletivo para uma consciência global da Terra, determinando assim a posição de ‘Deus’ em Lain. Ela demonstra como os limites de uma consciência incorporada são apenas as convenções de qualquer sistema codificado. Eus individuais de Lain, ultrapassam os controles sociais. O cibernético oferece uma liberdade para o meio da consciência. Na conclusão, Lain aceitou sua consciência eterna como um espírito dentro do The Wired. A sua mente dentro da rede se torna onipresente de autoconsciência vivendo em um ambiente físico comprimido e restritivo.
Lain estará com você pra sempre.